Poesia distraída
- Coluna Zélia Duncan | Jornal O Globo
- 1 de ago. de 2015
- 3 min de leitura
O contato com a cultura de cada local é a mais estimulante
Entre as melhores coisas de se ter uma profissão que nos propicia viajar, o contato com a cultura de cada local é, sem dúvida, a mais estimulante de todas. Comidas, comportamentos, vocabulário, propagandas, roupas, sotaque.
Este último então, me encanta particularmente, e quando se mistura com palavras cotidianas, formando uma outra, que só aquele lugar entende e absorve com extrema naturalidade, é melhor ainda. Semana passada foi assim, lá pelos lados do Ceará.
Entro no carro.
— Bom dia, qual seu nome?
O motorista se vira e oferece a mão. Era grandão, moreno, um senhor:
— Aurinho, muito prazer.
Por favor, a partir de agora, quando você ler esse nome, “Aurinho”, aperte uma tecla SAP dentro de sua cabeça e transforme no modo “cearês”, cantado, delicioso de se ouvir.
Ele era mais pra quieto, de fala mansa. O primeiro diálogo, claro, foi sobre o tempo. Seu Aurinho me ouve falar do inverno de 34 graus ali, em Juazeiro do Norte, e diz:
— Tem dia aqui que o calor é brabo.
— E hoje, tá fresquinho?
— E não tá? Quando tá quente aqui, é de rachar a mamona!
— Jura? Mas a que horas escurece?
— Ah, umas 17h30m o sol já tá se enterrando.
E assim foi minha chegada, já adorando meu interlocutor legítimo do Ceará. Percebeu que eu gostava dos “causos” e do léxico, então, começou a se soltar. Me ouviu falar de corrida, de exercício físico, disse que parava o carro perto do aeroporto e andava “aquilo tudinho”, que tinha emagrecido 20 kg assim, dieta e caminhada. Que tinha pensado em fazer a operação no estômago, mas o médico disse que nunca mais churrasco, cerveja, ele foi desanimando e resolveu emagrecer na marra. De repente, passamos por um lugar e eu avistei dois corredores.
— Olha, o povo gosta de correr aqui!
Seu Aurinho dispara:
— Eles pegaram essa mania, ficam arrudeando a rotatória.
Me levou num restaurante chamado Coisas do Sertão. Escolhi pelo nome, ele disse que era bem simples, aí que fiz questão mesmo. Comida deliciosa. Você pega o prato, arrudeia a mesa comprida e vai construindo sua torre comestível, até chegar na moça que pesa e aí já é tarde demais, a carne de sol com macaxeira, feijão de corda, paçoca, quiabo, arroz de fava, que pareciam pequenas porções, já formaram o famoso prato de estivador, que só não te envergonha completamente porque cada um ali tem o seu próprio monumento para explorar.
Mangusta? Isso, mangusta, ele disse, quando comecei a falar das frutas do Nordeste. Segundo ele, quando pequeno, morava num sítio, eram oito irmãos, muito cajá e pouca comida. Eles destrinchavam as frutas com as mãos, pra extrair a polpa. Prato fundo, polpa de cajá, farinha e leite. Ele arremata:
— Não era merenda não, era pra matar a fome.
Ah, Brasil…
Mas o humor sempre nos acompanha, ainda mais no Ceará, terra do mestre Chico Anysio. Adivinha como eles chamam o Poupa Tempo em Juazeiro do Norte? VAPT VUPT!
Uma passada pela estátua de Padre Cícero, que fica num mirante, pra ver toda a cidade. Custa nada fazer um pedido e admirar a fé das pessoas. E, mais ainda, suas linguagens.
Antes de ir embora, Seu Aurinho pergunta se tenho um disco, pra sua esposa.
— Sim, há quanto tempo o senhor é casado?
— Pouco. Responde, ligeiramente sem graça.
— Pouco quanto?
— É o segundo casamento…16 anos.
— O senhor acha pouco?
— Ah, se fosse a primeira, era bem mais!
Eu ri e lhe disse que tava bom e que teriam muito mais pela frente. Senti que ele respirou aliviado. Na nossa despedida, dei um abraço nele.
— Desculpe alguma coisa — foi a última coisa que ouvi daquele sujeito adorável.
— Desculpe o que, Seu Aurinho, só se foi por ter me deixado comer demais, me alimentar com gosto, das coisas do sertão?
Ele riu e partiu. Eu também.
Por alguma razão, isso tudo me fez lembrar que tive um sitiozinho na serra durante um tempo. E como era algo muito novo pra mim, o caseiro era meu mestre, meu oráculo. Ele era bem jovenzinho, mas aos meus olhos urbanos, parecia muito seguro de tudo. Uma vez veio correndo, com algo nas mãos, sabendo que sou curiosa, ansioso pra me mostrar. Era uma bromeliazinha linda, pequenina, diferente.
— Nossa, que coisa mais linda, não tinha visto!
Ele, sem saber que fazia poesia à la Manoel de Barros, responde:
— A chuva mostra!
Tem coisa melhor do que fazer poesia sem saber?
Hein, Seu Aurinho?
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